XINGU 57: viagem ao Brasil Central

Essa exposição é fruto de muito cuidado, desvelo, esmero. Ela é da lavra dos longos projetos feitos com amor, a seu tempo. Se foram intensas as últimas semanas de preparo e montagem, pesquisas, conversas e estudos tiveram início dez anos atrás, quando, em meio a conversas com meu avô sobre suas incursões Brasil afora, ressurgiram essas fotos. Naquele momento, quando vi pela primeira vez os filmes, me encantei, como espero que elas encantem o público presente neste espaço monumental.

Essa série fotográfica que aqui apresentamos, de forma cronológica, é acompanhada por quatro textos complementares, porém independentes, que perfazem a crônica da expedição. Elaborados pelo meu cúmplice nesta empreitada, o amigo jornalista Gustavo Torres Falleiros, eles elucidam com riqueza de detalhes o momento e o contexto da expedição. Nosso cuidado, afinal, foi tanto histórico quanto estético.

O projeto Xingu 57 e, portanto, essa exposição, só puderam acontecer com a contribuição de uma rede de pessoas e instituições. Sou grato ao Museu Nacional, na figura de sua diretora, Sara Seilert, por acreditar em nosso plano e nos acolher. Ao Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal, por ter financiado o resgate, a digitalização e o estudo dessas fotos. Foram também essenciais as contribuições de meu tio Bráulio Dias e de minha irmã Cecília Reifschneider para a qualidade da montagem aqui exposta. Aos amigos e equipe - estamos todos na ficha técnica - pelo esforço despendido. Aos líderes indígenas que nos acolheram para tratar desse resgate: sinto-me honrado. Agradeço, inteiro, aos meus avós, o carinho, a amizade e os ensinamentos que tive o privilégio de receber ao longo da vida.

O colecionador de imagens

Caçula, nascido em 1928, filho de um fazendeiro sonhador, Domiciano Pereira de Souza Dias teve sorte na vida. Não saiu da fazenda para os primeiros estudos, eles foram até ele. A verdade é que fora protegido pela mãe, pois vários de seus irmãos encontraram cedo o destino: tétano, tuberculose e concussão. A vida na fazenda, afinal, por melhor que fosse, era ainda muito mais rústica do que possamos hoje imaginar.

Seu encanto por fauna e flora, insetos em especial, veio cedo. Cercado por córregos e matas, pelos cafezais, com o irmão mais velho pioneiro em pesquisas genéticas na horticultura, ser cientista virou desde cedo ambição de Domiciano. Sobre seu pai, Gabriel, pouco se sabe - sua trajetória ficou na memória dos que com ele conviveram. Imbuído de um espírito de renovação, trazia ideias de fora antes da hora. Criou fábrica de cerâmica quando o chão era de terra batida, trouxe fábrica de leite pasteurizado para o país, quando o leite chegava fresco da vaca no quintal. Da cerâmica, não ficou uma. Do leite, sobraram ao menos duas garrafas.

A fotografia foi uma constante: o primeiro álbum que encontramos em seu acervo foi montado em 1945, com fotos tiradas em Pitangueiras e Porto Cemitério (hoje Colômbia, na divisa entre Minas e São Paulo). Contava, então, com 17 anos apenas. Álbuns com fotos reveladas como esse são poucos. A maior parte dos filmes está em envelopes, rolos, e uma boa parcela em slides. Projeções de slides para a família e amigos era um evento comum. As fotos preto e branco eram reveladas em seu laboratório particular. As coloridas, em geral, por ser um processo mais delicado, eram enviadas para laboratórios profissionais.

Os fatores que explicam uma série excepcional, como essa do Xingu, de 1957, ter permanecido inédita por quase 65 anos são múltiplos. A paixão de Domiciano pela fotografia é particular, íntima. Sua profissão foi de biólogo, entomólogo, ambientalista. Ele fez inúmeras outras viagens, incursões, expedições - passou temporadas no norte do país. As fotos, no entanto, ficavam em família, quando muito. As imagens, muitas vezes, existiam para ele, e mais ninguém.

Os filhos e netos que demonstraram algum interesse por fotografia ganharam algumas aulas práticas e manuais para estudo. Podiam também ver o processo de revelação - algo mágico - e entender um pouco da conservação do material. Domiciano era cioso de suas máquinas e lentes, estas mantidas em um gabinete de madeira com lâmpada infravermelha, ligada de tempos em tempos para que os fungos não as atingissem. As máquinas eram mantidas e recuperadas por ele - hoje são dezenas. Até mesmo o gabinete era de sua lavra. A marcenaria era outra de suas paixões. Fazia brinquedos, bancadas, gaveteiros, luminárias. Nessa convivência, a família aprendeu a não desperdiçar: utilizava portas velhas, sobras de madeiras, caixas recolhidas em quitandas. O apreço pelo que se tinha era outro.

Nem tudo eram flores, especialmente para os pequenos. As máquinas antigas, os filmes lentos, o desejo do clique perfeito, faziam com que a foto tomasse segundos mil, minutos até - tempo precioso e infindável para as crianças, que se desesperavam. Era aparecer o avô com a máquina em punho, por vezes outra no pescoço, e uma certa aflição se instaurava. Não fosse possível a fuga, era respirar fundo, esperar as instruções, aguardar o enquadramento perfeito. É preciso lembrar como era dispendiosa a fotografia e o tempo que havia entre o clique e a revelação: um certo cuidado ao escolher o que retratar, como retratar, era obrigatório. Esse fazer de Domiciano é provavelmente a explicação tanto das melhores fotos, quanto daquelas em que os retratados não estão lá muito sorridentes.

Assim é a vida. É preciso parar para ver - pausa - e ser visto. Caso tenha a sorte de encontrar Domiciano pela exposição, sorria (e segure a pose): é possível que seja fotografado.

XINGU 57: Crônica da expedição

O silêncio era o que mais impressionava. O silêncio do rio.

Domiciano Dias, depoimento ao autor.

Antecedentes

Se a as primeiras duas incursões ao Alto Xingu se devem ao etnólogo alemão Karl von den Steinen, na década de 1880, foi apenas a partir dos caminhos abertos pelo Marechal Rondon, na vontade de integração do Brasil Central, aliados a sua incomum preocupação com os nativos à época, que se construiu a história que agora podemos contar. Engenheiro e sertanista de ascendência indígena, Rondon seria também o primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910, que seria substituído pela Fundação Nacional do Índio em 1967.

A viagem empreendida por Domiciano Pereira de Souza Dias ao Alto Xingu em outubro de 1957, na companhia do médico Murillo de Oliveira Villela, de Durval Muniz Barreto de Aragão - funcionário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e do sertanista Orlando Villas Bôas, pode ser encarada como um desdobramento tardio da Expedição Roncador-Xingu, oficialmente encerrada em março de 1948. Essa expedição, cujo objetivo primeiro fora a abertura de um caminho que ligasse o Amazonas ao restante do país, no continuado processo de interiorização e povoação dessas extensas áreas remotas, não se deu sem dissenso.

Ao longo da década de 1950, o órgão diretor da empreitada, a Fundação Brasil Central (1943-1967), continuava a promover o desbravamento da região, embora sem o mesmo ímpeto. Em 1951, a coluna, cuja vanguarda havia alcançado as margens do rio Xingu, próximo à confluência com o rio Ronuro, dividiu-se em duas frentes. Coube a Orlando Villas Bôas chefiar a missão de subir a serra do Cachimbo e lá construir um campo. Outra equipe, liderada pelo engenheiro civil Frederico Hoepeken, percorreria o trecho Jacareacanga-Creputiá, rumo ao Alto Tapajós. A dispersão de esforços era um prenúncio da disputa que tomava corpo à medida em que a picada revelava imensas áreas não mapeadas do Estado do Mato Grosso - o destino dessa área seria definido ao longo da década.

Com o tempo, os atores envolvidos se identificaram em dois campos. Havia aqueles que defendiam a criação do Parque - os sujeitos de nossa narrativa - e os que reivindicavam a persecução dos objetivos originais da Roncador-Xingu, em estrita fidelidade ao ideário da Marcha para o Oeste, o programa de desenvolvimento pretendido pelo Estado Novo (1937-1945). Assim, a pretexto de promover a interiorização do país, desejava-se: implantar linhas telegráficas; abrir estradas; estender a malha aérea nacional até o Amazonas; explorar as riquezas minerais; e “integrar o índio à nação”.

Àquela altura, porém, Orlando e seus irmãos, Claudio e Leonardo, já haviam contatado diversos grupamentos indígenas, com destaque para os Kalapalo, em 1946, que ajudaram a mapear a complexa rede de relações entre as etnias locais – e confirmaram a existência, mais ao norte, daquelas isoladas ou avessas ao contato. Esse fato, somado às avaliações de cunho etnológico, zoológico e botânico emitidas por diversos pesquisadores a partir de 1947, quando o Museu Nacional firmou um convênio com a Fundação Brasil Central, ajudou a forjar a consciência de que aquele espaço deveria ser preservado.

Paulatinamente, ganhava corpo a ideia de se criar um parque que fosse, a um só tempo, reserva ambiental e território indígena. Em 1952, esse anseio tomou forma de um Anteprojeto de Lei, com apoio de figuras públicas, como o marechal Cândido Rondon, Heloísa Alberto Torres (diretora do Museu Nacional), Café Filho (vice-presidente da República), o antropólogo Darcy Ribeiro, José Maria da Gama Malcher (diretor do Serviço de Proteção ao Índio) e o médico sanitarista Noel Nutels (mais tarde, presidente da Fundação Brasil Central).

Embora o projeto gozasse da simpatia da opinião pública, encantada com as reportagens sobre o Xingu publicadas pela revista O Cruzeiro, ele colidia com os interesses de forças políticas e econômicas da época, e acabou “engavetado”. Sem abatimento, os irmãos Villas Bôas continuaram o trabalho de atração das etnias arredias, sempre aceitando a participação de profissionais de saúde, jornalistas e estudiosos de diversas especialidades nas missões que se seguiram.

É aí que entram Domiciano Dias e seus colegas da expedição de 1957 – um episódio singular e significativo que antecede a grande e inesperada vitória que foi a sanção do Parque Nacional do Xingu (hoje, Parque Indígena do Xingu), em 1961, pelo então presidente Jânio Quadros.

Crônica da expedição

Sabemos bastante sobre a expedição de 1957 graças à sobrevivência de três registros, que correspondem a três personalidades bastante distintas. Nesta exposição, são revividas as fotografias feitas por Domiciano Dias em suas câmeras Exakta e Leica, acompanhadas das minuciosas notas de sua caderneta, que eternizaram até a abertura de lente utilizada em cada clique. Sejamos exatos, aproveitando as informações em mãos: no caso das fotografias preto e branco, aqui expostas, ele se utilizou da lente Macro-kilar 40mm na Exakta e da clássica Elmar 50mm na Leica. O filme era o Kodak Panatomic-X, um filme lento, de grão fino, excelente definição, cultuado desde que deixou de ser produzido em 1987.

Se ao nosso entomólogo coube a imagética da viagem, o primeiro dos registros, nossa segunda referência são as memórias de Murillo Villela, que forneceu um vívido relato para o livro ‘O Xingu dos Villas Bôas’, publicado pela Agência Estado em 2002. Nele, o médico se concentra em fatos ocorridos a partir de 1959, por ter sido esse o ano em que se deu o primeiro contato direto com os Suiá (Kisêdje), etnia tradicionalmente aliada aos Juruna (Yudjá). Tal acontecimento teria repercutido na intrincada diplomacia indígena e, acredita-se, evitado uma guerra contra os Kaiabi (Kawaiweté), rivais dos Juruna à época.

Apesar da ênfase dada por Villela a esse episódio e a outros muito posteriores – a “pacificação” dos Ikpeng (Txikão), em 1964, e a tentativa frustrada de aproximação com os Krenakore (panarás), em 1968 –, fica evidente a continuidade da paisagem e dos personagens encontrados por Domiciano Dias. Como prova, estão as fotos reproduzidas no livro, pertencentes ao acervo do médico, várias datadas de 1958.

Nelas, vemos os mesmos equipamentos, os exatos latões de óleo, idênticas embarcações e seus motores de popa, e até a bermuda camuflada de Orlando Villas Bôas. Lá estão o chefe Bibina, de mãe Suiá, chefe dos Juruna, e crianças de ambos os povos. Existe, finalmente, uma foto de Raoni ao lado de Orlando, feita em 1959, e que parece confirmar o trânsito habitual de emissários Caiapó na região, conforme Domiciano Dias havia presenciado. Aliás, a nomenclatura dos povos indígenas é algo complexa, variando da autodenominação, da denominação por outros povos indígenas, ou por por nomes ocidentais, dados por cientistas, ou em incursões de outrora. Varia também a escrita, a ortografia. Raoni, por exemplo, do povo Caiapó, é conhecido como txucarramãe por outros povos, mas ele se auto denominam Metuktire. Os Juruna, Yudjá, e os Suiá, Kisêdje.

Amigo dos irmãos Villas Bôas de outras ocasiões, Murillo Villela fora convidado a ir ao Xingu com a missão de prestar assistência médica aos indígenas. No entanto, suas estadas, mais prolongadas do que a de outros visitantes, acabaram por lhe atribuir papéis que extrapolavam a medicina. Em seu autorretrato, revelou, por exemplo, ser “dublê de caçador e cozinheiro”. “Quando não estava cuidando da saúde de algum membro da expedição, estava procurando caça para abastecer a dispensa ou transformando-a em alimento para saciar o devastador apetite desencadeado pelo esforço despendido nas tarefas de abertura de um campo de aviação em região como aquela”, anotou Murillo.

Finalmente, o terceiro dos registros é a reportagem escrita de próprio punho por Orlando Villas-Bôas para o jornal paulista A Gazeta. Não que isso nos deva surpreender, uma vez que o talento para narrar do sertanista já havia ficado patente nos despachos emitidos por rádio para o Repórter Esso, nos tempos da Roncador-Xingu – e que foram reproduzidos no mundo inteiro, com tradução, graças à agência de notícias norte-americana United Press. O ápice dessa “cobertura” quase em tempo real provavelmente se deu em 20 de maio de 1947, com a descrição pormenorizada do espanto sentido pelos índios Kamaiurá e Trumai diante de um eclipse solar.

É importante frisar que a Roncador-Xingu recebeu grande atenção dos veículos de comunicação da época, com destaque para os textos de Jorge Ferreira e as fotos de Jean Manzon para a revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, mas Orlando preferia dar a sua versão dos fatos, sempre com traços de humor e tentativas de reproduzir a fala dos sertanejos.

A verve de Villas Bôas despertou a atenção até mesmo de Antonio Callado, que esteve no Xingu pela primeira vez em 1952, a serviço do jornal Correio da Manhã. Assim registrou o autor de Quarup: “Estive lendo excelentes artigos que (Orlando) escreveu para a Gazeta sobre as explorações: corretos na linguagem, frescos, cheios do falar pitoresco da malta alegre de mateiros do N. e do S. do país que tem acompanhado nesses rudes desbravamentos”.

Infelizmente, pouco se sabe sobre as percepções de Durval de Aragão, o encarregado do IBGE, que provavelmente manteve um diário de campo no exercício de suas funções. Todavia, o somatório das inteligências de Domiciano Dias, Murillo Villela e Orlando Villas Bôas é suficiente para afirmar que a crônica da expedição xinguana de 1957 é das mais completas de que se tem notícia.

Entram em cena os personagens

A reportagem escrita por Orlando Villas Bôas foi publicada em três partes, sendo que o desfecho ainda não pôde ser localizado. O primeiro capítulo ganhou as páginas de A Gazeta em 17 de outubro de 1957. Já a continuação veio à luz em 28 de outubro daquele ano. Juntas, dão uma ideia bastante acurada da atmosfera xinguana no período anterior à criação do Parque.

Ao modo de um romance, o texto do sertanista se preocupa em apresentar os personagens principais antes de desenvolver a trama. É assim que temos um “Durval Muniz Barreto de Aragão, tão cumprido como o nome, sobraçando 12 maletas”. E continua: “Vinha ele com a incumbência de levantar seis a oito coordenadas geográficas – Xingu, Diauarum, Cachoeira von Martius, Liberdade e Serra da Erosão”.

A missão do funcionário do IBGE era crucial, pois, como bem lembrou Domiciano Dias em depoimento aos autores, em uma viagem como essa, “a coisa mais difícil de todas era que você sumia do mapa”. Não era força de expressão – as comunicações eram, de fato, precárias, excetuando as transmissões de rádio entre o Posto Capitão Vasconcelos (atual Posto Leonardo) e as bases de retaguarda, além do envio de cartas, garantido pelo fluxo de aviões do CAN (Correio Aéreo Nacional). Acima de tudo, faltavam, justamente, as coordenadas exatas para a confecção de mapas.

“Bagagem delicada a do moço: relógios, tecnólitos, caixinhas, malas, cadernos e longos bocejos” são os atributos que encerram o perfil de Durval. Quando chega o momento de introduzir Domiciano na narrativa, também não faltam elementos caricaturais. Neste caso, vale a pena remeter a uma citação mais longa.

“Chegou o 3º personagem, dr. Domiciano Pereira de Souza Dias, da Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’. Dr. Domiciano trazia a tarefa de coletar mil coisas de interesse aos diversos departamentos da sua escola. Bagagem terrível a desse cidadão. Alto, magro, agitado, às vezes, impassível outras, o nosso cientista tinha esse ar que fica bem a um pesquisador. Coisa engraçada! – um sujeito baixo e gordão pode nunca ser um bom naturalista”, diverte-se Orlando.

E continua: “Pesquisador foi feito para gente magra e, se possível, nariguda. As dezenas de cientistas que por aqui tem passado, porfiam entre si na altura e magreza. Não é à toa que um sertanejo comentou: ‘Mais magro que esse dotô pode ponhá bandeira que é mastro’. De chapéu de explorador, faquinha ao lado, revólver de capa nova, bota e roupa amarela, o nosso ‘departamento’ cientifico lembrava bem o ‘alamão’ de Inocência de Taunay”.

É significativo que Villas Bôas se refira à visita de outros cientistas à região. Prospera, hoje, a interpretação de que as pesquisas desenvolvidas a partir dos anos 1940 tiveram peso considerável na elaboração do anteprojeto de lei de criação do Parque do Xingu. Mais precisamente, os laudos antropológicos do período defendiam o conceito de “área cultural”. Com isso, supunha-se que as diferentes etnias às margens do Xingu compartilhavam alguns elementos culturais, como o uso pelas mulheres do envoltório vaginal conhecido como uluri. Assim, a vasta e heterogênea “Área do Uluri” estaria apta a sobreviver a um arbitrário processo de demarcação.

Entre os cientistas que antecederam Domiciano, há dois que merecem um comentário mais detalhado, ambos pertencentes aos quadros do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. O primeiro é José Cândido de Mello Carvalho, a quem se costuma atribuir a ideia da criação do Parque, conforme sustenta o engenheiro Manoel Rodrigues Ferreira em seus relatos publicados em 1948 pela mesma A Gazeta, de São Paulo. Entomólogo como Domiciano, ele é autor de um estudo sobre os insetos da região que se tornou referência.

O segundo é o antropólogo Pedro Estevão de Lima, a quem devemos o levantamento antropométrico de todos os grupos do Alto Kuluene, à exceção dos Mehinako. Conforme a geógrafa Maria Lucia Pires Menezes, os arquivos de Lima incluiriam 269 fichas antropométricas, 269 fichas datiloscópicas, 65 peças de material etnográfico e – atenção – 600 fotografias em preto e branco e 75 fotografias em cores.

Em continuação às apresentações feitas por Orlando, chegamos ao médico da expedição, mas esse foi poupado da irreverência habitual do sertanista. Com sobriedade, esclarece a reportagem: “Veio também o dr. Murillo de Oliveira Villela, médico em S. Paulo, trazendo armas e caixotes de medicamentos, na sua 3ª vinda ao Xingu. Murillo chegou, foi tomando conta da farmácia, dos doentes e dos caixões estufados de medicamentos”.

Há de se observar que Villela também teve antecessores notórios em campo, sendo o mais afamado entre eles o médico malariologista, tisiologista e sanitarista Noel Nutels, que se tornou grande amigo de Orlando. “Russo de nascimento, engolido pelo Nordeste, aonde chegou menino, dr. Noel, extrovertido, alegre, falante, trazendo uma experiência de outras áreas brasileiras, foi conquistando todo mundo. Sua passagem pela Fundação (Brasil Central) foi das mais úteis”, asseverou o sertanista no livro “A marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-Xingu”, escrito a quatro mãos com Claudio Villas Bôas. Noel era em verdade judeu ucraniano de nascimento e sua família fugira dos pogroms russos - talvez isso o tivesse preparado para acolher tão bem os povos da floresta aqui perseguidos.

Por fim, mas não menos importante, Orlando nomeia “os daqui mesmo”: o motorista Lourenço, os índios Kaiabi Pionin, Coá e Taoá, e “o minúsculo menino Mehinako Mai-Mai”. Nessas linhas, de forma sutil, também é informado o pano de fundo da expedição de 1957: “nove índios Txukarramãe, que apareceram no Posto depois de uma ‘breve caminhada’ de 45 dias, aguardavam ansiosos a nossa descida para regressarem à sua região”. Dois deles foram identificados como lideranças: Krumare e Cobre.

A aventura

Em 1957, Domiciano Dias não estava desavisado quanto às dificuldades de uma viagem do gênero. Trazia, na memória, a infância na fazenda, incursões de pesca na adolescência, e mesmo uma primeira ida ao Rio das Mortes, descendo o rio em encontro ao Xavantes. Perguntado sobre essa primeira visita ao Brasil Central, Domiciano responde que a questão é que ele queria mesmo conhecer aquela região: era simples e pura curiosidade. Nem tão simples assim: era necessário um certo espírito aventureiro, explorador e, em seu caso, de investigação científica mesmo. Nosso entomólogo queria era conhecer melhor o seu país, a começar pela tão comentada região do Xingu, dos povos da floresta. Esse interesse foi, certamente, despertado pela leitura das obras de Willy Aureli e Angenor Couto de Magalhães, cujo “Encantos do Oeste” era, por sinal, o livro de cabeceira do adolescente Orlando Villas Bôas, assim como pelas reportagens das principais revistas e jornais do país. Os relatos de exploradores, nacionais e estrangeiros, aliás, encantavam Domiciano - eram muitos os tomos do gênero em sua biblioteca.

Foi nesse espírito que abraçou a oportunidade de se juntar à expedição, com a tripla tarefa de: a) colher espigas de milho indígena para a USP (Universidade de São Paulo), onde era professor assistente, entre outras instituições; b) coletar orquídeas para a Escola de Agricultura da mesma USP; c) recolher abelhas para os seus próprios estudos. Trazia, ainda, uma carta de recomendação da Universidade de Curitiba.

O ímpeto científico logo se chocou com a realidade dos deslocamentos, rio abaixo, em batelões rústicos. “Os barcos repletos, só por milagre de equilíbrio se mantinham à tona”, anotou Villas Bôas. “Em todas as paradas o magro cientista descia afobado, tropeçando na carga, ora com um apanhador de borboletas, ora com vidrinhos e caixinhas. Isto tudo, não sem antes remover pontas de lona à procura de uma malinha que é sempre a que está no fundo, com dezenas de volumes em cima. Um inseto requer uma caixinha, a caixinha está numa malinha e a dita só Deus sabe onde está.”

O que mais preocupava Orlando, porém, era o trato com os Txucarramãe, que procuram se inteirar sobre as intenções da Fundação Brasil Central e, sobretudo, das outras etnias. Naquele momento, Villas Bôas se apoiava fortemente nas relações de amizade dos Juruna, representados na figura de Bibina, para fazer o difícil trabalho de atração e pacificação, indispensável para a acomodação dos povos no futuro Parque do Xingu. Ocorre que os Txucarramãe eram “inimigos figadais” dos Juruna.

Daí a importância de, após quatro dias de viagem, terem alcançado a aldeia Juruna e sido recepcionados cordialmente. Os brancos testemunharam, então, mais uma lição de diplomacia indígena. “Na noite da chegada, os Txucarramãe, como homenagem à aldeia visitada, puseram-se em linha e começaram a cantar. Logo após a primeira cantoria, que foi a canção do milho ‘baú mencrére’, passaram ao ‘iré iré teré no equé’, já agora com a companhia de alguns Juruna –Daa, Pitsacá, Pixanda e outros. Música puxa música e assim foram até lá pelas 11 da noite”, escreveu o sertanista.

Rio abaixo, as maiores provas de perseverança ainda estavam por vir. Após dois dias de barco, chegaram “à Cachoeira von Martius, onde a expedição teve de enfrentar não a agressão de indígenas hostis, mas o ataque terrível de uma nuvem de insetos”, recordou vividamente Domiciano Dias. Esta queda d’água é famosa por abrigar o pium, gênero de borrachudo hematófago, de picada muito desagradável.

Na crônica de 1957, não poderia faltar uma “homenagem” a essas pequenas feras. “Há quem pense que no sertão a onça, o jacaré e a sucuri constituem a preocupação máxima dos que por lá andam. Nada disso. O pium e a muriçoca, a muriçoca e o pium sim é que constituem o tormento das expedições”, ironizou Villas Bôas.

Havia, ainda, o desafio imposto pelas corredeiras. A travessia não foi sem esforço, conforme nos informa a reportagem de A Gazeta. “Água pelo peito, pisando pedras escorregadias e vencendo a força da corrente, fomos aos poucos levando as embarcações corredeira abaixo. Numa passagem de desnível mais acentuado a embarcação menor alagou. Corremos a socorrê-la. Ia nela nosso material de cozinha e coisas não perecíveis, a não ser duas maletas do Dr. Domiciano que, por teimosia sua, ali as acomodara.”

Vencer a von Martius tinha um significado especial, pois desvelava uma nova paisagem natural, como a confirmar o caminho certo, que vai dar no rio Liberdade. “Da cachoeira para baixo, o Xingu é um outro rio. Em tudo difere ele do curso superior. Correndo agora em leito pedregoso, ele avança apressado, sem tempo sequer de fazer uma nesga de praia. Baixios extensos contornam inúmeras ilhas. Volta e meia, pedras enormes coroam no rio. E estas, que no meio do curso represam as águas, recebem destas um impacto que estronda, que estronda e que espuma e que volteiam apressadas para recuperar o tempo perdido”, descreveu Orlando Villa Bôas.

A chegada à barra do Liberdade, no Sul do Pará, significou uma nova etapa de trabalhos, desta vez, com protagonismo de Durval de Aragão, que tinha coordenadas a levantar. O grupo se dividiu em dois, com Domiciano e o índio Kaiabi Coá ficando responsáveis pela guarda do acampamento e os demais subindo o Liberdade em busca dos lugares indicados para realizar o levantamento encomendado pelo IBGE.

Já com todos reunidos, houve uma mudança de planos considerável, graças à oferta da FAB de transportar os Txucarramãe até a Ilha do Bananal (TO), onde estariam bem mais próximos de casa. Não se sabem detalhes sobre o acerto com a Força Aérea, mas o fato é que Domiciano viu a oportunidade de desembarcar antes da expedição, sem precisar fazer o caminho de volta por rio, e pediu carona. Com escalas em Pimentel Barbosa (MT) e Aruanã (GO), entre outros, foram quase 48 horas até que o Beech Aircraft o deixasse em Ribeirão Preto (SP). De lá até sua São Carlos (SP), era apenas “um pulo”.

1957/2017 - O reencontro

Nos dias 13 e 14 de outubro de 2017, por ocasião da Primeira Grande Assembleia da Aliança dos Guardiões da Mãe Natureza, lideranças indígenas do mundo todo se reuniram em Luziânia (GO), a 60km de Brasília. Foi nesse espaço de diálogo e união que tivemos a honra de nos encontrarmos com personalidades xinguanas para apresentar o projeto Xingu 57. Ao longo da sexta-feira e do sábado, conversamos demoradamente com os chefes Aritana Yawalapiti e Afukaká Kuikuru, e nos reunimos também com Megaron Txucarramãe e Raoni Metuktire. Com a colaboração deles, enriquecemos nossa compreensão dos registros que temos em mãos, da importância dessa memória, e aproveitamos o momento para distribuir uma série de fotos para todos que por elas se interessaram. A fotógrafa Mariana Costa acompanhou a equipe, registrando aquele momento de troca, que contou com a grata presença de Domiciano Dias.

Nesse encontro, o maior entusiasta do Xingu 57 foi o chefe Aritana, que nos acolheu de imediato, mostrando grande interesse pelas fotografias. Ao longo das conversas, ele escolheu alguns exemplares das fotos, entre eles um registro de Akueté Aweti, Sariruá Yawalapiti e Kalukamã Aweti, três dos principais chefes xinguanos à época. Ao ver a foto, Aritana comentou que ela portava uma força muito grande para ele, para seu povo. É que no final dos anos 1950, os Yawalapiti estavam se reorganizando, tendo passado por um período difícil de baixa populacional. Se Sariruá fora um dos grandes responsáveis por essa reconstrução, Aritana era, no momento de nossa conversa, símbolo maior de seu sucesso, uma das lideranças indígenas do país.

Em 2018, apenas seis meses após essas conversas, visitamos a bela exposição “Yawalapiti - Entre tempos”, do fotógrafo francês Olivier Boëls. Ao entrar na sala, via-se uma foto de Aritana sentado, olhando para a câmera, segurando a foto de Domiciano. O impacto foi grande. Procuramos Olivier, que afirmou não conhecer a origem daquela foto, mas relatou que o próprio Aritana havia pedido a ele o registro, pois era muito importante preservar aquela imagem - ela não poderia se perder.

Assistindo a um filme de 1978, ‘Raoni’, narrado por Marlon Brando, nos deparamos com um belo depoimento do jovem Aritana, já liderança. Ele aparece inicialmente comentando a luta Huka-huka, da qual era campeão, e depois pondera:

Se esquecer a história, se esquecer a luta, perde toda a vida. Não sabe como era a história antiga, a vida antiga, esquece tudo. Primeiro tem que saber a vida do índio. Segundo tem que saber a vida do caraiba também.

Essa consciência da necessidade de se conhecer a própria história, da importância da memória, sua e do outro, não é nada comum. No mesmo filme, Aritana aparece com Raoni, conversando sobre questões de demarcação das terras indígenas, prometidas pela FUNAI. Questões essas que nunca deixaram o pleito indígena, por não terem sido resolvidas - mesmo o que parece solucionado é continuamente posto em xeque por interesses políticos e econômicos de poucos. A mensagem desse filme é inequívoca e o narrador diz ao final: “Todos pensam que alguém mais está ajudando, mas isso simplesmente não é verdade. Se não for você, quem? Se não for agora, quando?”

Essa é uma homenagem a Aritana, líder de seu povo e exemplo para tantos, que sucumbiu, em 2020, neste triste período da pandemia mundial, à Covid-19. Sua luta é nossa luta.